Na UTI a vida está em suspenso, assim define Moacyr Scliar, famoso escritor e médico gaúcho, na epígrafe que emoldura a introdução da nossa reflexão ética sobre a utilização das UTI, após sua experiência de vida ao passar algum tempo numa delas, ao se recuperar de um problema de saúde. Nessa imagem plástica, Scliar, como fino escritor e profissional médico conhecedor das coisas médicas, capta muito bem o imaginário popular em relação a essa especialidade terapêutica médica contemporânea de “salvar vidas”. Aí a vida está como que num “limbo”, como que tendo ultrapassado os “perigos de ser mortal” e os umbrais da morte, estando num novo estado, “em suspenso”.
As UTI são hoje unidades hospitalares de cuidado da vida humana em situações críticas que apresentam grande complexidade e dramaticidade. De um lado, estamos diante de expressões magníficas do progresso técnico-científico da medicina, que realiza verdadeiros “milagres” ao salvar vidas que até há muito pouco tempo era simplesmente impossível fazer, a não ser em sonho! Por outro, assombra e assusta o fato de podermos ser obrigados a passar por prolongado, sofrido e inútil processo de morte!
Esse é o cerne da problemática da chamada “obstinação terapêutica”, ou medicina fútil e inútil, ou simplesmente “distanásia”, que pode transformar o final de nossa existência, tornando-nos simples prisioneiros de uma aparelhagem técnica que, mais que prolongar a vida no final da vida do ser humano, transforma esses momentos em verdadeira tortura de dores e sofrimentos. Nesse contexto de cuidados intensivos e críticos, sentimentos de esperança à espera de uma recuperação “milagrosa”, difícil mas possível, somados ao medo e angústia profunda de perder a própria vida ou a de alguém querido, estão inacreditavelmente juntos!
O Ministério da Saúde, por intermédio da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), dispõe sobre os requisitos mínimos para funcionamento de UTI, definindo paciente grave como aquele que apresenta comprometimento de um ou mais dos principais sistemas fisiológicos, com perda de sua autorregulação, necessitando de assistência contínua. A Anvisa também define UTI como área crítica destinada à internação de pacientes graves, que requerem atenção profissional especializada de forma continua, materiais específicos e tecnologias necessárias ao diagnóstico, monitorização e terapia. O documento classifica as UTI em várias categorias:
UTI – adulto, destinada à assistência de pacientes com idade igual ou superior a 18 anos, podendo admitir pacientes de 15-17 anos, se definido nas normas da instituição;
UTI especializada, destinada à assistência a pacientes selecionados por tipo de doença ou intervenção, como cardiopatas, neurológicos, cirúrgicos, entre outras;
UTI neonatal, destinada à assistência a pacientes admitidos com idade entre 0 e 28 dias;
UTI pediátrica, destinada à assistência a pacientes com idade de 29 dias a 14 ou 18 anos, sendo este limite definido de acordo com as rotinas da instituição;
UTI pediátrica mista, destinada à assistência a pacientes recém-nascidos e pediátricos numa mesma sala, porém havendo separação física entre os ambientes de UTI pediátrica e UTI neonatal.
As questões éticas que hoje se apresentam nas UTI são inúmeras e complexas: decisões terapêuticas de investir ou não no tratamento do paciente; definição de estado de reversibilidade ou não; administração de nutrição e hidratação; comunicação de más notícias; participação dos familiares no processo de decisões do paciente; interação profissional da equipe de cuidados que atua na UTI com o paciente e familiares (humanização); decisões judiciais para admissão de pacientes em UTI, entre tantas outras.
Não obstante os avanços da medicina de cuidados críticos, ou medicina científica, a UTI ainda permanece como a unidade em que muitos pacientes morrem. Entre os pacientes portadores de doenças crônicas que morrem no hospital, aproximadamente metade é cuidada em UTI nos três dias antes de sua morte e um terço passa pelo menos 10 dias na UTI durante o período final de sua hospitalização. Em 1995, aproximadamente 20% de todas as mortes nos Estados Unidos (EUA) ocorriam numa UTI. Estudos nos EUA, Canadá e Europa mostraram que a maioria das mortes em UTI envolve decisões difíceis sobre o uso de tratamentos de sustentação da vida para os pacientes graves que não respondem mais às terapias de cuidados críticos. Para esses pacientes, um objetivo importante é proporcionar uma morte sem dor e sofrimento, bem como um cuidado compassivo aos seus familiares.
A morte nunca deixa de ser atual e nos provocar em termos de vida. Ela sempre tem um encontro não planejado conosco, visitando-nos de uma forma silenciosa, mansa e surpreendente, através de perdas de entes queridos obrigando-nos a refletir sobre nossa própria vida finita, ou então, através de situações inusitadas e inesperadas que nos amedrontam.
A questão é tão preocupante e pungente que a arte, literatura e mídia discutem-na constantemente. Dentre os filmes que abordam a temática, premiados com o Oscar, destacam-se “Mar adentro” e “Menina de ouro”, que apresentam a eutanásia como solução diante de uma vida marcada pelo sofrimento e dependência. Na esfera social também começam a surgir as primeiras políticas públicas como, por exemplo, a legalização da eutanásia em 2002 na Holanda e Bélgica. Nesse último país foi aprovada em 2014 a extensão da prática da eutanásia para menores de idade, reacendendo o debate internacional sobre decisões médicas em fim de vida em crianças.
No final de 2014, o mundo assistiu a um novo caso de repercussão nos EUA, no estado do Oregon, onde a prática do suicídio assistido é legalmente permitida. Trata-se da jovem Britney Maynard, que ao descobrir, em janeiro de 2014, uma doença fatal que a condena a poucos meses de vida, temendo morte excruciante e dolorida, decide, em concordância com seu jovem esposo, familiares e médico, pelo suicídio assistido, levado a efeito em 2 de novembro do mesmo ano. Neste momento histórico, a Suprema Corte do Canadá está legalizando naquele país o suicídio assistido, e a França, a sedação profunda, que vem sendo criticada como uma forma de “eutanásia disfarçada”.
Cuidados paliativos: necessidade emergente e urgente no sistema de saúde
Em 2002, a Organização Mundial da Saúde (OMS) definiu “cuidados paliativos” (CP), enfatizando a eliminação ou diminuição da dor e sofrimento: Cuidados paliativos é uma abordagem que aprimora a qualidade de vida, dos pacientes e famílias que enfrentam problemas associados com doenças ameaçadoras de vida, através da prevenção e alívio do sofrimento, por meios de identificação precoce, avaliação correta e tratamento da dor e outros problemas de ordem física, psicossocial e espiritual . A partir dessa definição, pode-se pensar em uma filosofia de cuidados paliativos, a qual especifica alguns princípios fundamentais:
a) valorizar a obtenção e a manutenção um nível ótimo de dor e a administração dos sintomas;
b) os CP afirmam a vida e encaram o morrer como um processo normal;
c) não apressam nem adiam a morte;
d) integram aspectos psicológicos e espirituais dos cuidados do paciente;
e) oferecem sistema de apoio para ajudar os pacientes a viver tão ativamente quanto possível, até o momento da sua morte;
f) ajudam a família no enfrentamento da doença do paciente e no luto;
g) a família é uma unidade de cuidados, juntamente com o paciente; g) os CP exigem uma abordagem inter e multidisciplinar (trabalho em equipe);
h) destinam-se a aprimorar a qualidade de vida;
i) são aplicáveis no estágio inicial da doença, concomitantemente com as modificações da doença e terapias que prolongam a vida.
O cuidado da dor e sofrimento como direito fundamental
Dor e sofrimento são companheiros da humanidade desde tempos imemoriais. Seu controle e alívio constituem-se hoje em competências e responsabilidades éticas fundamentais dos profissionais da saúde. Essa ação é um indicador essencial de qualidade do cuidado da dor e sofrimento, bem como da assistência integral ao paciente, no âmbito da saúde.
Hoje se reconhece que a dor é uma doença. De acordo com a definição da OMS, a saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não somente a ausência de doença ou de mal-estar . É evidente que as condições dolorosas constituem um estado de mal-estar; portanto, o ser humano que sofre de dor não está sadio, e pode-se afirmar – legitimamente – que se está violando seu direito inalienável à saúde. O artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos reconhece como um dos direitos dos seres humanos um nível de vida adequado para a saúde e o bem-estar . Infelizmente, saúde e bem-estar nem sempre são uma escolha possível, já que, em inúmeras situações, muitas pessoas, por causa da velhice ou das doenças, sentem dor e sofrem muito no final da vida.
Um dos principais perigos em negligenciar a distinção entre dor e sofrimento é a tendência dos tratamentos de se concentrarem somente nos sintomas e dores físicas, como se esses fossem a única fonte de angústia e padecimento para o paciente. Tende-se a reduzir o sofrimento a simples fenômeno físico, que pode ser mais facilmente identificado, controlado e dominado por meios técnicos.
Além disso, tal relação permite continuar agressivamente com tratamentos fúteis, na crença de que, se o tratamento protege os pacientes da dor física, os protegerá também de todos os outros aspectos, inclusive de sua angústia existencial. A continuidade desses “cuidados” pode estar impondo mais sofrimentos ao paciente terminal e seus familiares. O sofrimento tem de ser visto e cuidado em quatro dimensões fundamentais:
Dimensão física;
Dimensão espiritual;
Dimensão psíquica;
Dimensão social.
Paradigmas de curar e cuidar
O paradigma da cura induz a que se adote a ética da resolutividade acrítica – se algo pode ser feito; logo, deve ser feito – e a que se esqueça de que nem tudo o que é possível realizar cientificamente é eticamente admissível. Também conclama a idolatrar a vida física e alimentar o desejo de prolongar a vida, mesmo quando a qualidade de vida se deteriora e o viver se restringe a condições francamente inaceitáveis. Este vitalismo ganha forma na convicção de que a inabilidade para curar ou em evitar a morte é uma falha da medicina. A falha dessa lógica está no fato de que a responsabilidade de curar termina quando se esgotam os tratamentos possíveis e, não havendo mais cura, admite-se: “não se tem mais nada a fazer”
A verdade é que a medicina não pode afastar a morte indefinidamente. A morte finalmente acaba chegando e vencendo. A pergunta fundamental não é se vamos morrer, mas quando e como teremos de enfrentar essa realidade. Quando a terapia médica não consegue mais atingir os objetivos de preservar a saúde ou aliviar o sofrimento, tratar para curar torna-se uma futilidade ou um peso e, mais do que prolongar vida, prolonga-se a agonia. Surge então o imperativo ético de parar o que é inútil e fútil, intensificando os esforços no sentido de proporcionar mais que quantidade, qualidade de vida diante do morrer.
Acerca da polêmica sobre a ortotanásia no Brasil
Partindo da perspectiva de que a morte é uma dimensão de nossa existência humana, pois somos finitos e mortais, assim como temos o direito de viver dignamente, temos implícito o direito de morrermos com dignidade, sem sofrimentos ou prolongamento artificial do processo do morrer (distanásia), mas isso não nos dá o direito de abreviar a vida, o que seria a prática da eutanásia. A Resolução 1.805/2006 do Conselho Federal de Medicina vai contra a distanásia e eutanásia, sendo favorável à ortotanásia, isto é, o morrer natural sem dor e sofrimento, cuja vida na sua fase final não foi abreviada e muito menos prolongada:
Art. 1º É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal.
Art. 2º O doente continuará a receber todos os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, assegurada a assistência integral, o conforto físico, psíquico, social e espiritual, inclusive assegurando-lhe o direito de alta hospitalar.
O Judiciário, no caso o juiz que embargou a resolução em Brasília precisa de mais cultura ética e bioética para distinguir os conceitos de eutanásia e ortotanásia, pois é possível perceber que os argumentos apresentados estão embaralhados. O entendimento de ortotanásia é de que, se a pessoa está morrendo, portanto, no momento final, não vamos abreviar sua vida praticando a eutanásia e muito menos prolongar seu processo agônico, que seria uma prática distanásica, a ser igualmente evitada. O processo para cancelar a Resolução CFM 1.805/2006 terminou em dezembro de 2010, com decisão favorável ao CFM. A resolução está em pleno vigor.
Felizmente, no Brasil, o último Código de Ética Médica (CEM), vigente desde 2009, admitiu entre os seus princípios fundamentais o princípio da mortalidade humana (inciso XXII): Nas situações clínicas irreversíveis de terminais, o médico evitará a realização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará aos pacientes sob sua atenção todos os cuidados paliativos apropriados . Enfim, a medicina brasileira entra definitivamente no século XXI, ao admitir de forma explícita a realidade da morte na prática médica, e da limitação de investimentos terapêuticos que teriam como consequência a prática da distanásia.
Salvar vidas, sim, ajudando a recuperar a saúde quando possível é, sem sombra de dúvida, uma das finalidades importantes da medicina. O outro lado da moeda, também tão importante quanto esse primeiro de aliviar o sofrimento humano curando quando possível, é ajudar as pessoas a dizer adeus à vida com dignidade. A dimensão da finitude humana não pode ser vista como patologia a ser curada. Não somos doentes de morte, essa é uma dimensão de nossa condição humana. Reconhecer e respeitar limites é imperativo ético de primeira grandeza nessa área especializada da medicina intensiva que são cuidados intensivos e críticos.
Hoje, o cenário ainda é muito complexo e complicado nesse sentido, quando sabemos que pelo menos no Brasil apenas 30% dos pacientes que estão nas UTI brasileiras são terminais… Esses deveriam estar recebendo cuidados de conforto físico, psíquico, social e espiritual, como mencionamos. Criou-se um mito acerca da UTI de que nela ocorrem milagres… sim, de fato, mas podemos facilmente incorrer em procedimentos distanásicos, isto é, prolongamentos indevidos apenas do processo de morrer. A ética na UTI navega sobre o “fio da navalha”: qualquer procedimento errado acarreta, inevitavelmente, consequência desastrosa. Nesse contexto de cuidados, a ousadia científica tem necessariamente de andar de mãos dadas com a prudência ética:
O desafio ético é considerar a questão da dignidade no adeus à vida, para além da dimensão físico-biológica e para além do contexto médico-hospitalar, ampliando o horizonte e integrando a dimensão sociorrelacional. Existe muito o que fazer no sentido de levar a sociedade a compreender que o morrer com dignidade é uma decorrência do viver dignamente e não meramente sobrevivência. Se não se tem condição de vida digna, no fim do processo garantiríamos uma morte digna? Antes de existir um direito à morte humana, há que ressaltar o direito de que a vida já existente possa ter condições de ser conservada, preservada e desabroche plenamente. Chamaríamos a isto direito à saúde. É chocante e até irônico constatar situações em que a mesma sociedade que negou o pão para o ser humano viver lhe oferece a mais alta tecnologia para “bem morrer”!
Não é à toa que a obra de Atul Gawande, “Mortais: nós, a medicina e o que realmente importa no final”, trate justamente dessas questões dos limites das possibilidades de investimentos terapêuticos e sentido no final da vida. O autor lembra que as pessoas no final de sua vida querem compartilhar memórias, transmitir sabedorias e lembranças, resolver relacionamentos, estabelecer seu legado, fazer as pazes com Deus, e certificar-se de que aqueles que estão deixando para trás estarão bem. Querem terminar suas histórias segundo seus próprios valores e rituais .
Fonte: http://revistabioetica.cfm.org.br/
Foto: O MÉDICO, Samuel Luke Fildes (1891).